“Taca Farinha”: cultura e comércio do alimento xodó dos amazonenses reforçam identidade local

Por Maurício Max

1º EP: Ancestralidade, indentidade e clima

 

A indígena Mel Mura cresceu ouvindo dos avós que a farinha não é apenas um alimento, mas um símbolo de memória e resistência da etnia que carrega no nome.

Formada em Desenvolvimento Rural e Segurança Alimentar pela Universidade Latino-Americana, Mel reúne conhecimento técnico sobre o produto tão consumido na Amazônia e também carrega uma herança ancestral.

Mel Mura guarda as memórias dos antepassados sobre a importância das casas de farinha, como a da avó Osmarina Nascimento. Hoje, as casas de farinha, estão presentes em incontáveis comunidades ribeirinhas e zonas rurais em todo o Brasil.

Esses espaços são considerados sagrados por povos indígenas. Neles, cada etapa — da construção ao tratamento da mandioca — envolve rituais e técnicas específicas para o preparo da farinha.

A farinha, antes de processada, vem do solo através da mandioca. A história retrata que o tubérculo era cultivado há cerca de seis mil anos no sul da Amazônia, em uma região que hoje inclui os estados do Acre e Rondônia.

Um estudo elaborado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e pesquisadores de outros países, publicado em março deste ano de 2025 na revista Science, revela que os povos originários foram responsáveis por expandir o cultivo da mandioca em diferentes regiões do continente americano, fazendo uma espécie de intercâmbio com outras aldeias para selecionar as melhores plantas e dar qualidade ao alimento.

A professora e historiadora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Gleice Oliveira, explica ainda que já havia um processo de modernização entre os indígenas para o comércio intertribal e a farinha como moeda de troca.

A historiadora destaca também que a devastação e as mudanças climáticas colocam em risco a segurança alimentar das civilizações indígenas nas últimas décadas.

O debate sobre a segurança alimentar e agricultura das civilizações indígenas e ribeirinhas será um dos temas na 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30) marcada para novembro, em Belém, no Pará.

 

Uma das principais pautas defendidas por lideranças indígenas é o fortalecimento da agricultura tradicional. A proposta é impulsionada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, a COIAB.

A entidade lançou a campanha “A Resposta Somos Nós”, que valoriza o manejo sustentável e a produção de alimentos como soluções para enfrentar a crise climática.

 

2º EP: De grão em grão, de geração em geração

O ano era 2015 quando Jony Brito decidiu sair da cidade de Uarini, no interior do Amazonas, e se instalar em Manaus para abrir uma loja exclusiva de farinha. O empresário tinha em mente que a fabricação feita de forma artesanal pela família seria o ponto crucial para conquistar clientes.

O desafio do empreendimento era superar a popularidade de pequenos comércios e grandes redes de supermercados, que vendem farinha em praticamente todas as esquinas da capital do Amazonas.

A história da loja Grãos Dourados, de Jony Brito, está totalmente relacionada à cidade natal dele: Uarini.

O município fica a mais de 500 quilômetros de distância de Manaus, mas possui uma fama local histórica sobre a qualidade do alimento fabricado na localidade.

Em 2024, a farinha de Uarini foi declarada pelo governo como Patrimônio Cultural do Amazonas.

Esse prestígio é motivo de orgulho para Jony, que tem a bandeira da “Terra da Farinha” em destaque na loja.

 

Segundo Jony, um dos impactos do negócio dele foi valorizar determinados agricultores, que pagavam valores expressivos para que a mercadoria fosse transportada para Manaus pelo rio Solimões e distribuída aos revendedores.

O capital de giro do negócio chega a 50 mil reais por mês, pelas vendas no atacado e varejo e entrega para todo o Brasil, com preços a partir de 10 reais.

O empreendimento conta com mais de 15 variedades. São opções de farinha grossa, mais fina, recheadas, como por exemplo, a de pirarucu, e também opções voltadas para pessoas com restrição alimentar, que segundo Jony, impulsionaram ainda mais o negócio.

Em Uarini, praticamente um time serve de apoio para Jony. São 10 irmãos do empresário, todos trabalhando na produção da casa de farinha da família Brito.

Depois que a mandioca passa pelos processos de trituração, peneiramento e torração, um diferencial da família se destaca. Ronny Von Brito é um dos irmãos agricultores que trabalha no espaço. Segundo ele, um rigoroso teste de qualidade é realizado grão a grão para garantir que a farinha atenda ao tamanho exato do tipo desejado.

Uarini possui pouco mais de 15 mil habitantes e tem 37 por cento da economia local voltada para a atividade agropecuária, tendo a farinha como principal item.

São 27 toneladas em média produzidas mensalmente do produto no município, segundo a Secretaria de Produção Rural do estado.

Um dos grandes desafios enfrentados, ano após ano pelos agricultores, tem sido principalmente o período da estiagem. No ano passado, os amazonenses enfrentaram uma seca histórica que impactou diretamente as cidades ribeirinhas.

Ronny Von lembra que a seca afetou a produção de farinha da região. Ele já está preocupado com o verão amazônico neste segundo semestre de 2025.

De acordo com dados do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável, são mais de 70 mil agricultores em todo o Amazonas. O estado é o segundo em produção de mandioca na região Norte, ficando atrás apenas do Pará.

Selmo Andrade atua no projeto do Idam que auxilia comunidades no plantio da mandioca e também observou que os pequenos produtores sofreram impacto com as mudanças do clima, que não se limitam apenas à seca — a cheia também traz reflexos negativos.

Mais de 180 toneladas de farinha foram produzidas em 2024, gerando uma receita bruta, segundo o Idam, em torno de um bilhão de reais ao Amazonas.

 

EP 3: Nem toda farinha é do mesmo saco

 

Do outro lado do mundo, a farinha amazonense é tida como o alimento mais precioso na casa da publicitária Fabiana Costa.

Morando no Porto, em Portugal, há oito anos, a manauara até estoca farinha para se sentir próxima das raízes.

A saudade e o desejo por farinha também são sentidos por quem mora no Brasil. A aposentada Fátima Sales, que mora no Ceará, recorre aos filhos para ter o produto na mesa sempre que pode.

A farinha é muito mais que um alimento de sabor e sobrevivência. É também uma identificação com a região e uma das formas de interação social desde as primeiras civilizações indígenas.

Um dos exemplos são as casas de farinha, que contam com a participação de famílias na produção e até reuniões sociais de comunidades ribeirinhas.

A especialista em desenvolvimento rural indígena Mel Mura lembra que as diferenças da farinha variam de um povo originário para outro.

Seguindo a linha histórica, o doutor em antropologia social Clayton Rodrigues, analisa que as formas de interação da humanidade transformaram o olhar da região sobre a farinha.

Além de saborosa, a farinha é rica em diversos nutrientes que auxiliam o organismo de quem consome e garante de forma democrática parte da mesa dos amazonenses.

A nutricionista Izabela Oliveira explica os benefícios do alimento.

Para quem vive em solo amazonense, basta sentir vontade. A aposentada Wilma Lopes até sentiu o desejo durante a entrevista.

Todos nós ficamos, dona Wilma!

Esta reportagem teve a supervisão de texto de Rafael Campos, edição de áudio de Thaís Gama, sonorização de Juarez Sicçu e Josemar Miranda, criação de design de Clara Toledo e surpevisão digital de Rennan Gardini.

A composição sonora contou com as obras de Djuena Tikuna, Brisa Flow, Kaê Guajajara, Orquestra de Beiradão do Amazonas, Tucumanus, Raizes Caboclas, Zeca Preto, Teixeira de Manaus, David Assayag, Chico da Silva e Nicolas Jr.

 

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